Crítica: O Diabo de Cada Dia

 "Algumas pessoas nasceram para serem enterradas.”

Imagem promocional do filme "O Diabo de Cada Dia"

Eu tenho certeza que a dona Netflix escolheu o elenco do seu novo filme original, que estreou neste dia 16, a dedo. Quando o trailer de “O Diabo de Cada Dia” foi lançado nas redes sociais, lembro de ver a internet explodindo com piadas e memes sobre essa junção, quase um crossover, de atores jovens, muito queridos pelo público e que coincidentemente acontecem de estar no universo dos super-heróis mainstream (entre eles Tom Holland, Robert Pattinson e Sebastian Stan). Mas a última coisa que a gente vê nesse filme são esses mesmos atores sendo o que a gente normalmente espera deles nas telas.

A própria Netflix resumiu bem isso com esse tweet:


Baseada no livro homônimo de Donald Ray Pollock e dirigido por Antonio Campos, “O Diabo de Cada Dia” não é uma história fácil de se assistir. Além de ser super lento em algumas partes – principalmente no início – e de ter um número grande de personagens, com suas tramas e seus entrelaçamentos, para acompanhar, ele lida com temas extremamente sensíveis como abuso psicológico e físico, abuso de autoridade (policial e religiosa), manipulação, estupro, assassinato, suicídio… Enfim, tudo o que a miséria humana pode oferecer em uma pequena cidade conservadora no interior dos Estados Unidos.

Mencionei o livro pois, pelo que pude observar enquanto assistia, apesar de não ter lido a obra, que o filme provavelmente não foge muito da sua origem literária. Com mais de duas horas de duração, o seu enredo é muito detalhado e é preciso muita atenção e calma para entender pra onde ele está indo e as relações estabelecidas entre as personagens, como fazemos quando lemos um livro denso.

A trama acontece entre duas gerações, uma nos anos 1950, logo após a Segunda Guerra Mundial, e outra no final dos anos 1960. Essa passagem de tempo, que vai e volta durante todo o filme, vai nos mostrando como os males herdados através das gerações vão tornando as vidas daquelas pessoas mais e mais complicadas, tomando decisões cada vez mais terríveis e perversas. A violência que essas pessoas sofrem, seja ela familiar, religiosa ou social, às levam à ruína, e é nisso que o longa foca.

Os questionamentos existenciais que o filme nos traz não para só pela questão geracional, mas também na crítica à religião, que oprime e manipula e à fé cega das pessoas, que clamam por um deus parece tê-las abandonado. Esse clima de desespero e abandono é bem mostrado pela fotografia e pela cinematografia do filme, com os cenários bem desgastados, muitas cenas em campos abertos e na mata selvagem e com as cores cinzentas manchando todo o filme.

Dentre todos as performances incríveis que esse filme nos trouxe, quero destacar a do Tom Holland como Arvin Russell, que talvez seja a melhor do ator até hoje. Foi muito bom vê-lo num papel mais moralmente cinza, carregado de traumas e bagagem emocional - Arvin mostra, de forma bem cruel, pra gente até onde uma pessoa “boa” pode ir quando é forçada pelas condições ao seu redor. Quem carrega o filme junto com ele é Robert Pattinson, como o pastor Teagardin, que convence demais no papel perturbador de homem manipulador e calculista que usa a religião para conseguir o que quer. Quando os dois se enfrentam em uma cena específica, dentro da pequena igreja da cidade, é um dos pontos altos da história - a tensão entre as personagens é palpável e te faz ficar na ponta do sofá para acompanhar o vai e vem entre os dois.

A passagem lenta do filme atrapalha o desenvolvimento de algumas outras personagens - na minha visão, principalmente as personagens femininas. Se formos pensar de acordo com a época e o local em que a história se passa, faz sentido a maioria delas ser calada e subserviente, mas mais alguns diálogos e exposições não iam doer. Quem se destaque é a Lenore, interpretada por Eliza Scanlen, que aquela personagem fofa e inocente que queremos proteger de tudo e de todos, mas que, infelizmente, no universo construído na narrativa e também na vida real, não está imune aos males do mundo.

Enfim, como já deixei claro aqui antes, “O Diabo de Cada Dia” não é um filme que você vai assistir para se divertir e ficar de boa, mas é uma história super bem executada e surpreendentemente atual (com a qual podemos fazer diversas relações com o Brasil de hoje) que vai, sim, te deixar levemente perturbado, mas vai te mostrar muito sobre a condição humana.
Luiza de Toledo

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Luiza de Toledo

23 anos, estudante de letras, professora, pseudo-cinéfila e sommelier de fanfiction.

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